Respondendo a um leitor: meus problemas com a TACE

Recebi um e-mail interessante de um estudante de economia interessado em economia austríaca que me fez uma série de perguntas, dentre elas uma sobre a minha opinião sobre a TACE (Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos) e a aplicação dela para explicar a atual crise (principalmente americana). Quando percebi, a resposta que eu havia preparado para ele acabou se “transformando” em um artigo que caberia aqui no blog. Antes de prosseguir, para quem não sabe o que é TACE ou mesmo porque eu considero uma boa teoria, tenho dois textos sobre o tema (neste, explico mais diretamente o que é a TACE e estefala da teoria austríaca do capital central na teoria dos ciclos da escola, além de tratar da própria TACE).
Meus problemas com a teoria e o porquê acho que ela não explica muito bem crises como a atual são divididos principalmente em dois tópicos: a relação entre taxa de juros (praticadas por um banco central, por exemplo) e taxas de inflação e questões referentes à expectativas. Vamos a elas.
I – Taxa de Juros e Inflação
Uma dificuldade prática da teoria austríaca dos ciclos é determinar, dado a miríade de taxa de juros que temos, o que seria a “taxa de juros natural”. Teoricamente a definição é simples: em termos mais teóricos, é a taxa que reflete a preferencia temporal (descontada as expectativas de inflação e riscos) ou ainda, uma definição mais “pragmática”, é a taxa de juros que “emergiria” em um mercado desobstruído e que equilibraria oferta e demanda por poupança. O que nos leva a perguntar: qual seria essa taxa se não temos mercados desobstruídos? A principio, só com base nessa resposta poderíamos afirmar se a “taxa atual está muito alta ou muito baixa”. Como acho que 99,9% dos austríacos são simpáticos aos mercados e, assim como eu, acham que governo nenhum conseguiria determinar o preço de equilíbrio de alguma coisa (inclusive, é justamente para isso que existiriam mercados), ficaríamos sem uma resposta e dificilmente poderíamos argumentar que a taxa é muito alta ou muito baixa.
Um argumento muito usado por austríacos anti-reserva fracionada é que a própria existência de reserva fracionada empurra “artificialmente” a taxa de juros para baixo, logo essa característica presente no atual sistema econômico seria suficiente para afirmar a existência de tendências de desvios de uma taxa de juros “sintética”, que vemos diariamente nos mercados, da taxa de juros teórica de mercado. Isso não faz muito sentido, dado que reserva fracionada é uma possibilidade de mercado (aliás, uma possibilidade bem provável. Veja, por exemplo, este texto meu onde explico a naturalidade dessa modalidade em um livre mercado), logo a suposta baixa da taxa de juros provocada pelas reservas fracionadas seria um fenômeno de mercado, nada “artificial”.
A resposta econômica mais teórica (e completa) a isso (a baixa artificial da taxa de juros) é que reserva fracionada descasa a demanda por poupança da real oferta de poupança. Segundo austríacos anti-reserva fracionada, se eu deposito X em um banco e o banco empresta 0,9X deixando de reserva 0,1X, o que ocorre é que existe uma quantidade de poupança depositada (X), mas um uso de recursos como se tivéssemos 1,9X (um X meu, que continuo usando os recursos, afinal, tenho acesso ao saldo da minha conta corrente e mais o 0,9X emprestado para outras pessoas que usarão esses recursos).  Eu acredito que essa explicação seja um erro relacionado ao entendimento do conceito de demanda por moeda e na implicação que essa demanda tem na poupança. Obviamente um aumento de demanda por moeda não é necessariamente um aumento de poupança (a pessoa pode trocar títulos por moeda, por exemplo, deixando a poupança inalterada), mas certamente um aumento da demanda por moeda é uma ação que deixa bens produzidos sem ser consumidos, que abre a possibilidade desses bens produzidos serem consumidos por outras pessoas.
Explicando melhor, se as pessoas depositam no banco uma quantia X de dinheiro e resgatam 0,1X dessa quantia regularmente, sendo que o restante (0,9X) fica parado no banco, isso é uma disponibilização para o banco de fundos emprestáveis, em termos econômicos “abstratos”, são bens produzidos que as pessoas deixam na mão do banco para que ele os use. Ele, banco, passará então a emprestar esses 0,9X e, naturalmente, a oferta de fundos emprestáveis aumentará, derrubando a taxa de juros para uma dada curva de demanda por empréstimos.  Esse mecanismo não produzirá absolutamente nenhum tipo de descasamento de oferta e demanda de poupança, porque esse empréstimo adicional foi realizado com bens que o produtor (ou proprietário original) abriu mão em troca de “moeda” (no sentido amplo, incluindo saldos em conta corrente). Se pessoas consumirão sem produzir (com os novos empréstimos bancários), outras não consumirão o que produziram (aquelas pessoas que deixaram de consumir bens para manter uma maior porção de moeda no seu portfólio). Veja que o fato de você poder usar a qualquer hora os saldos em conta corrente não significa efetivamente que você os usará. Se aquilo compõe a sua demanda por moeda, eles ficarão parados em um certo nível, nível esse que permite ao banco emprestar uma parte do dinheiro depositado e deixar a outra parte como reserva para os eventuais saques dos seus clientes (ou de pessoas que receberam cheques daquelas contas, por exemplo). Assim, reserva fracionada não causa necessariamente descasamento entre demanda e oferta por poupança (ou fundos emprestáveis). Mas sim, ela pode causar e aqui entra o verdadeiro sintoma que indica a um banco central (ou mesmo a um emissor de moeda qualquer) se ele está levando a taxa de juros a níveis perigosamente baixos: inflação (entendida aqui como variação do “nível de preços”).
Voltemos a minha descrição sobre o porquê reserva fracionada não descasa oferta e demanda por poupança. As pessoas depositavam certa quantia no banco e sacavam sempre uma parcela, fazendo com o que o banco estimasse corretamente o montante de reservas que deveria manter (que é exatamente o necessário p/ saciar esses saques), o restante as pessoas “não usavam”, elas abriam mão e deixavam parado no banco e o banco então emprestava exatamente essa parte que ficava parada. Em termos de inflação e demanda por moeda, supondo que o depositante mantém a quantidade de “outside Money” (OM) que deseja manter dentro da sua carteira de “moedas”, ele aumenta sua demanda global por moeda, mantendo a mesma quantidade de “OM” que antes e adicionalmente depositando recursos no banco para obter “inside money” (IM). O banco responde a isso aumentando sua produção de IM (que é a única coisa que ele consegue produzir no arranjo econômico atual).  Uma demanda por moeda adicional (os recursos deixados no banco em forma de saldos em conta corrente) é respondido com um aumento da oferta  de moeda (essa produção de saldos em conta corrente acessível via cheques e cartões de débito). Como não há descasamento entre demanda e oferta de moeda em sentido amplo (OM + IM), não há inflação e obviamente, como explicado anteriormente, não há descasamento entre demanda e oferta de poupança.
Mas o que aconteceria se o banco não deixasse como reserva o valor que corresponde ao desejo de saques dos seus clientes (“reserva ótima”)? Bem, os clientes depositaram e desejam manter a quantia 0,9X no banco (esse foi o aumento da sua demanda por moeda), enquanto o banco emprestou, digamos, 1,5X. Mais pessoas pela economia estão com 1,5X em “vale bens” enquanto, na outra ponta, os depositantes só abriram mão de 0,9X em bens. Veja que já temos o descasamento entre oferta e demanda por poupança. Mas adicionalmente, existem pessoas com mais moeda e poucos bens a disposição para serem comprados (porque os depositantes abrirão mão de menos bens do que as emissões/empréstimos do banco correspondem).  O resultado será uma concorrência por esses bens. As pessoas ofertarão muitas moedas para poucos bens, o que significa que o preço desses bens em termos de moeda subirá, ou seja, teremos inflação.
O esquema explicado aqui foi basicamente o mesmo defendido pelo economista sueco Knut Wicksell (e que Hayek e Mises usaram para o desenvolvimento da teoria austríaca dos ciclos como sendo resultado de um descasamento entre a taxa “natural” de juros e a taxa praticada no mercado). A taxa natural de juros, além de equilibrar a demanda e oferta de poupança, também “equilibra” demanda e oferta de moeda, no sentido de que não há variação do nível de preços. Se a taxa praticada está “abaixo” da natural, a demanda por poupança seria maior que a oferta e teríamos inflação. Teríamos deflação na situação oposta (a taxa acima da “natural”). Eu acredito que esse “modelo” é fundamentalmente correto e que, portanto, existe um sinal, (a taxa de inflação) informando se a taxa de juros “está alta” ou “baixa” para uma dada economia. Dessa forma, tanto bancos centrais quanto emissores de moeda privadas poderiam tentar determinar a famosa “quantidade ótima” de moeda (entendida aqui como a quantidade que produz uma inflação muito baixa, zerada) através das tradicionais compra e venda de títulos e taxas de juros, algo como é feito hoje.  Excluindo a explicação criticada neste texto (e que, obviamente, eu não considero correta como tentei mostrar), eu não vejo como a taxa de juros de uma economia possa estar “fora” do seu valor correto e mesmo assim termos preços relativamente estáveis.
Finalmente, voltando à crise americana, quando a crise estourou (e até agora) os níveis de preço apresentavam grande estabilidade, o que para mim significa que a taxa de juros americana não estava “artificialmente abaixo” da suposta “taxa natural de mercado”, o que já invalidaria toda a explicação dada pela teoria austríaca como causadora da crise. Isso aparentemente se repetiu na grande depressão de 29, onde as taxas de inflação também estavam relativamente estáveis e a crise veio (o que também, dentro do que eu coloquei, inviabilizaria a explicação austríaca). Não sei se autores como Rothbard ou Hoppe perceberam algo assim e, por isso, se voltaram a atacar o sistema de reservas fracionadas (tanto em termos econômicos como gerador de ciclos, como em termos éticos/morais), já que essa condenação fecharia a explicação (eu posso ter descasamento das taxas, de oferta e demanda de poupança mesmo sem inflação, logo a teoria austríaca se aplicaria perfeitamente tanto na depressão de 29 quanto na atual crise).
II – Expectativas
Aqui a questão é bem mais simples e talvez menos interessante que a primeira. Tenho outro texto onde explico de forma mais indireta o mesmo que falarei aqui (para quem se interessar, eis o link).
Toda teoria econômica (ortodoxa, pelo menos) é construída sob a hipótese de que os agentes econômicos são racionais, o que para nossos propósitos quer simplesmente dizer que eles buscam maximizar lucro/utilidade, o que significa que tudo aquilo que é percebido como relevante por esses agentes está incluído na análise de custo-benefício de suas ações. O que isso tem a ver com expectativas? Se uma variável futura (como juros, nível de preços etc..) é de extrema importância para a tal da “maximização de lucro”, os agentes gastarão recursos e procurarão estimar (prever) essas variáveis usando todas as informações relevantes disponíveis para assim evitarem erros que custem (e prejudiquem a obtenção de um lucro maior). Mais “forte” ainda, os agentes econômicos não cometerão “erros sistemáticos” nas suas previsões e construções de estimativas. De forma bem simplificada isso é o que é conhecido na literatura econômica como “expectativas racionais”.  Embora pareça algo assustador, irreal (ainda mais quando você vê escrito em “matematiquês” e tem a impressão de que estamos falando em onisciência), expectativas racionais é algo bastante “óbvio”: se um agente percebe um erro sempre, ele corrige esse erro (daí a história de que a esperança dos erros é zero) ou ainda, dado que custa errar, ele busca da forma mais econômica possível (considerando gastos e benefícios), não errar.
Imaginemos primeiramente (em uma situação simplificada) que a teoria austríaca seja verdadeira e que como o mercado maximiza lucros, obviamente siga a teoria que explica ciclos e assim ajuda a evitar perdas para os agentes de mercado.  Qual seria a primeira reação dos agentes econômicos (principalmente grandes empresários, banqueiros etc..) quando o governo baixasse “muito” a taxa de juros? Obviamente como todos esses agentes econômicos sabem, essas taxas não refletem novas poupanças logo eles não estão aptos a aumentar seus investimentos, “alargar a estrutura de produção”, porque sabem que “lá na frente”, faltará poupança, os preços relativos (incluindo os juros) que hoje tornam esses investimentos de longo prazo lucrativos reverterão e o que era a mina de ouro virará um abacaxi. Em suma, os próprios agentes econômicos “abortam” o ciclo, porque eles sabem que a teoria austríaca é verdadeira.
Tudo que eu disse acima parece um pouco “conversa de louco”, onde eu suponho que agentes econômicos conseguem “prever” o futuro e rastrear todas as etapas de um ciclo usando a supostamente correta teoria austríaca, mas se pararmos para pensar, não seria tão fantasioso assim. Obviamente o pedreiro que vai trabalhar na construção do mega arranha céu que se tornou lucrativo por causa da baixa dos juros não sabe nada disso, não tem nem idéia do que seja teoria austríaca, ciclos econômicos etc.. mas o “cabeça” do projeto provavelmente saberia e se ele não sabe, com certeza o banqueiro que vai financiar a obra sabe. Outro ponto mais pragmático é que a própria busca por lucro gera incentivos para os agentes se informarem sobre ciclos, juros etc.. de forma que a recorrência de uma politica de governo que baixa juros e gera um “boom” e depois a recessão começaria a gerar uma perda de “efeito” (os agentes sabem que não dá para investir olhando apenas para a taxa de juros hoje ou daqui 1, 2 anos e que essa baixa atual é insustentável, como foi há 4, 10, 5 anos atrás). Esse é um postulado “clássico” da economia ortodoxa sobre politica econômica: a recorrência a uma dada politica torna essa mesma politica ineficaz, os agentes econômicos “aprendem”.
De forma mais direta e em um pouco de “economês”, “política monetária prevista” ou previsível não geraria efeitos ditos reais (no PIB, no emprego, enfim, não causariam ciclos), apenas politicas imprevisíveis (surpresa) teriam essa capacidade. A razão para isso é que politica monetária só geraria efeitos reais se conseguisse alterar preços relativos, mas preços relativos são alterados apenas se variáveis “reais” se alteram (disponibilidade de recursos como trabalho, capital, a preferencia dos consumidores pelos bens etc..). Como a politica monetária, a principio, não  modifica essas coisas, ela só pode alterar variáveis reais por meio de “enganos” e ilusões que os agentes econômicos sofreriam através dos sinais de preço (o exemplo mais clássico é o trabalhador que fixa seu salário nominal com base em uma inflação esperada – o que por sua vez determinaria o salário real dele, mas devido a mudanças na politica monetária do governo essa inflação esperada não se realiza e o seu salário real acaba sendo diferente do previsto/desejado).  Mas, por hipótese, é previsível os movimentos do governo com sua politica monetária (daí o termo “politica previsível / prevista”), logo o agente econômico sabe que a inflação futura (ou os juros) provavelmente será diferente da atual ou da que o governo fala que vai perseguir. Sabendo isso ele “embute” essa expectativa de mudança nos preços pelos quais oferta seus serviços tornando o efeito surpresa da politica menor ou inexistente, consequentemente tornando-a ineficaz em alterar coisas como emprego, PIB etc.. (usando o exemplo do trabalhador novamente, ele faria contratos de trabalho mais curtos ou com reajustes maiores engatilhados se esperasse uma inflação maior etc.. Essas “defesas” visariam exatamente tornar seu salário real imune a politica monetária do governo).
Os empresários que vão tomar empréstimo ou o banco que vai conceder o empréstimo também ficariam atentos a essa previsibilidade da politica monetária do governo. Ele ao ver que o governo está emitindo moeda em excesso, gerando inflação, sabe que a queda da taxa de juros não é algo consistente, que é algo forçado (e considerando que a TACE seja verdadeira), que essa baixa não se sustentará e tornará projetos de maior prazo não lucrativos no futuro. Diante disso, obviamente ninguém vai se aventurar investindo “zilhões” em investimentos de longo prazo só porque o governo baixou a taxa de juros, porque no futuro esse cenário necessariamente se reverterá.  Pelo mesmo principio explicado no caso do trabalhador (que tenta imunizar seu salário real da politica monetária que ele prevê), os empresários / banqueiros também tentarão imunizar a lucratividade dos seus investimentos da mesma politica monetária prevista do governo. Assim baixas e altas de juros previstas provavelmente não causarão impacto real (como ciclos, variação de emprego) algum.
Novamente voltando à crise americana, eu não vejo qualquer componente de imprevisibilidade da politica monetária americana. Ela foi durante toda era Greenspan praticamente a mesma, logo não me convence que uma politica dessas tenha qualquer efeito real na economia (em termos de ciclos econômicos). Acho que a quebra dos bancos e o ruído gerado por esse evento nas avaliações de risco e na intermediação entre poupadores e demandantes de poupança, sim tem um componente de imprevisibilidade e isso provavelmente tem efeitos reais. Mas a quebra de bancos a meu ver é mais resultado de um esquema regulatório com incentivos perversos (explico um pouco essa questão nesse texto ), do que algo a ver com a TACE.  

UPDATE (29/11/2012) – Para quem quiser maiores detalhes sobre a questão mencionada no tópico I sobre o descasamento (ou não) de oferta e demanda de poupança em um sistema de reserva fracionada, pode ler o meu texto Reservas fracionadas geram ciclos?

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